“Literatura como estética de ampliação dos sentidos”

alice!

Um mundo nonsense, que convida admiradores de todas as idades a explorarem o inconsciente e trilhar, junto com uma menina, caminhos desconhecidos. Esse é o “País das Maravilhas” da pequena Alice, que mergulha em uma trajetória fantasiosa, atraindo tanto crianças encantadas pela imaginação da protagonista, quanto adultos, desafiados a fugir do senso comum diante de uma obra repleta de magia e de novos sentidos.

A obra original, escrita em 1865 pelo professor de matemática inglês Charles Lutwidge Dodgson, que assinava seus livros como Lewis Carroll, foi adaptada às telas de cinema pela Disney e, em 2010, ganhou uma versão do irreverente Tim Burton. Traduzido para mais de 50 línguas,  o livro é uma das fontes de pesquisa da professora de literatura Rosana Bines.

Para ela, o impacto de “Alice no País das Maravilhas” para o mundo das artes tem a ver com a capacidade da obra de se manter conectada, através dos tempos, com as inquietações dos leitores, propondo-lhes velhos e novos enigmas, por meio de um repertório verbal e visual de grande riqueza, que possibilita desdobramentos e releituras permanentes.

O que faz de “Alice no País das Maravilhas” um clássico que desperta o interesse de crianças e adultos por tantas gerações?

Rosana Bines: Alice no país das maravilhas resiste a classificações simplórias que reduzem o alcance da literatura e buscam fixar um público-alvo muito específico para as obras. O que significa uma literatura de 0 a 6 anos, por exemplo? Os critérios que determinam tais rótulos baseiam-se na extensão do texto e no emprego de temas e vocabulário “compatíveis” com certa faixa-etária. Por mais paradoxal que isso possa parecer, os textos literários de qualidade precisam às vezes esquecer seus destinatários, oferecendo-lhes não apenas aquilo que eles já sabem e dominam, mas justamente aquilo que ainda desconhecem, que os coloca “em apuros” e que pede um investimento na direção do imprevisto e na sondagem de percursos não trilhados. A obra de Carroll tornou-se um clássico porque fez uma aposta alta na literatura como experiência estética de ampliação dos sentidos, propiciando a crianças e adultos uma viagem exploratória a um mundo feito de aberturas e passagens que não se fecham.

A obra foi escrita para o público infantil interpretar de uma maneira e os adultos de outra?

RB: O que faz de Alice no país das maravilhas um clássico é que se pode “entrar” no texto de diversas maneiras, seja pelo gosto de aventura, da magia e das brincadeiras sonoras com a linguagem, seja pela atenção mais detida sobre os jogos semânticos de palavras, a crítica política contra o autoritarismo da Era Vitoriana ou as interpretações de ordem psicanalítica ligadas às imagens do inconsciente. Leitores de todas as idades encontram na obra de Carroll razões de sobra para voltar a ela como fonte renovada de prazer, em diversas etapas da vida.

A música dos Beatles “I am the Walrus” é inspirada em “Alice no País das Maravilhas”. Qual a importância e a influência do livro para a produção artística mundial?

RB: Pode-se avaliar a importância de uma obra no cenário artístico mundial pelo número de citações, reapropriações e traduções dessa obra para outros meios, como a música, as artes visuais e a própria literatura. Essa rede potente composta de inúmeras “Alices”, espalhadas em telas, melodias, páginas, nas mais diferentes línguas e recantos do mundo presta testemunho à vitalidade da obra de Carroll, que se reinventa e se fortalece na pluralidade e na dispersão. O impacto do livro para o mundo das artes tem a ver com a capacidade da obra de se manter conectada, através dos tempos, com as inquietações dos leitores, propondo-lhes velhos e novos enigmas, dúvidas, desafios, por meio de um repertório verbal e visual de grande riqueza, que convida a desdobramentos e releituras permanentes.

Existe relação entre a obra e o surrealismo? Afinal de contas, a obra utiliza elementos nonsense e oníricos, apesar de ter sido escrita antes do manifesto surrealista. Além disso, é uma história cronológica, com início, meio e fim muito claros. Até que ponto contar uma história que se passa em um sonho, no qual há expressão do inconsciente, perpassa uma abordagem surrealista?

RB: O livro é “surreal” na medida em que trapaceia com a realidade plausível, aquela que nossa razão e bom senso julgam controlar. No país das maravilhas, um coelho carrega um relógio que não marca as horas, os animais apostam uma corrida em que todos ganham e Alice aumenta e diminui de tamanho aleatoriamente. Essas dimensões do aleatório, da insensatez, do insólito e da surpresa apresentam a vida de forma elástica e experimental, afinada à dinâmica do inconsciente e às práticas surrealistas, posteriormente descritas. Nesse caso, não se trata de conferir cronologias, mas de atestar potenciais afinidades.

Há informações de que Lewis Carroll era pedófilo, apaixonado por uma menina chamada Alice Liddell. Na sua opinião, para o caso específico de “Alice no País das Maravilhas”, qual o limite entre a vida do autor e sua obra?

RB: Os elos que vinculam vida e obra são complexos. É claro que não se escreve no vácuo. Há sempre alguém que narra de algum lugar, numa dada língua, no âmbito de uma cultura, fincado num certo tempo. Mas essas referências não são matemáticos, tampouco firmam uma identidade fixa para o texto ou para o autor. O escritor argentino Jorge Luis Borges disse isso muito bem: “Na realidade não tenho a certeza de que exista. Sou todos os autores que li, toda a gente que conheci, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei, todos os meus antepassados.” Se Carroll era ou não pedófilo, isso não deveria entrar na conta da literatura. Pelo texto circulam muitos sentidos, alguns projetados pelo autor, outros que ele não controla nem antecipa, outros ainda trazidos pelos leitores de diferentes épocas, outros produzidos intertextualmente, pelo entrecruzamento de obras, e outros tantos sentidos por vir.

Além de escritor, Lewis Carroll era professor de matemática e escreveu vários livros e artigos sobre lógica, tema pelo qual era apaixonado. Como a matemática influenciou sua obra literária?

RB: Alice no país das maravilhas trabalha com a “Lógica do sentido” – título de um estudo conhecido do pensador francês Gilles Deleuze sobre a obra de Carroll. Deleuze busca pensar, na companhia de Carroll, que todo sentido tem um caráter disparatado. Para dizer o sentido da palavra “a”, precisamos sempre dispor de uma outra palavra “b”, e para explicar a palavra “b”, precisaremos recorrer a uma terceira palavra “c” e assim por diante, a partir de uma lógica de regressão infinita. Se, por um lado, esse mecanismo marca a nossa incapacidade de atribuir um sentido preciso e fechado para as coisas, por outro, marca a potência infinita das palavras de falar sobre outras palavras. Na obra de Carroll, esse potencial é maximizado pelos jogos de linguagem e o nonsense, que embaralham o senso comum, desfazem as cartas marcadas e evidenciam que o sentido sempre pode ser outro.

Carroll era um escritor que usava muitos silogismos e brincadeiras com a língua. Você acha que isso se perde nas traduções? Como as traduções influenciam na qualidade da obra?

RB: As traduções são um capítulo à parte na discussão da obra de Carroll. O autor brinca com um cancioneiro popular feito de rimas, cantigas de ninar e personagens singulares da literatura britânica que não encontram correspondentes exatos em outras línguas. Nas versões em português da obra, o grande racha das traduções está em abrasileirar ou não o texto original, em recriar na língua da tradução o potencial de invenção da língua de origem ou buscar uma tradução mais fiel e literal. Ambos os caminhos envolvem riscos. A fidelidade ao original pode resultar em expressões incompreensíveis em português, inviabilizando o riso do leitor diante do nonsense que não se traduz ao pé da letra. Por outro lado, abrasileirar demais o texto pode descaracterizar a obra. Monteiro Lobato inaugurou uma linhagem de tradutores brasileiros que apostaram em uma Alice de “cor local”. A tradução recente feita por Jorge Furtado e Liziane Kugland (editora Objetiva) segue essa tradição lobatiana. Há ali uma passagem que julgo sensacional porque celebra a potência inventiva da língua inglesa de Carroll, usando criativamente os recursos da língua portuguesa. Quando a lagarta de narguilé pede que Alice recite qualquer coisa que venha a sua cabeça, a menina junta as mãos e começa: “Ave-Maria cheia de graça, é ela a menina que vem e que passa, no doce de leite a caminho do mar. Santa Maria, Pinta e Nina, se essa rua fosse minha, vamos todos cirandar. Minha terra tem palmeiras, botafogo e laranjeiras, patos, mirim e mangueira, onde canta um sabiá”. Essa mixórdia de referências da literatura, da religião, da história e do cancioneiro popular do Brasil é uma maneira inteligente e divertida de traduzir o esquecimento e a confusão de Alice diante de seu próprio universo cultural, que não se sustenta mais de pé e desmorona no país das maravilhas.

O sonho colorido de Almodóvar a serviço da arte do exagero

filmes_almodovar_estilizados

Almodóvar não quer imitar a realidade. Ele prefere viver sonhando. Um sonho colorido, um mundo reinventado. Para o cineasta, “uma pessoa é legítima quanto mais se parece com seu sonho”. Se a originalidade do espanhol é incontestável, ela se deve exatamente pelo seu olhar onírico e idiossincrático sobre a vida.  Nesse aspecto, pode-se ressaltar as cores e as interpretações exageradas do diretor, que mais do que ver, afirma usar as “cores que sente”.

Seus tons explodem, saltam aos olhos, assim como as emoções. Se eles são propositalmente afetados, os sentimentos não poderiam ser mais verdadeiros. Crus, rebeldes. Enquanto o amor, em muitos de seus filmes (como “A Pele que Habito”, “Fale com Ela” e “Má Educação”) é um mergulho no escuro, seu colorido extravasa uma sensibilidade ardente. É assim que são seus personagens: viscerais, passionais e obsessivos. A complexidade amorosa ganha lentes de aumento, revelando uma visão profunda e plural da paixão.

Ao mesmo tempo, critica as instituições sociais, a igreja, o preconceito sexual e o machismo. Suas mulheres são heroínas, repletas de tons vermelhos de poder. Apreendem o verdadeiro significado do amor, como em “Volver”, em que a personagem de Penélope Cruz aborda o sentimento materno que ultrapassa qualquer barreira, inclusive a relação homem-mulher.

Se, aparentemente, o viés folhetinesco dos filmes de Almodóvar pode soar como trivial, o cineasta mostra que, pelo contrário, proporciona uma experiência cinematográfica única. Dono de uma estética brutal, ele é como um leão devorador de arte e o faz com paixão. Costuma dizer que tem total poder sobre os atores, pois é o único espelho em que podem se mirar. “O diretor de cinema é aquilo que mais se parece com Deus”, afirma o espanhol. Nesse sentido, a sétima arte de Almodóvar se distancia do teatro, apesar das interpretações também remeterem ao excesso. O diretor faz questão de não perder sua marca, de impor seu estilo feérico. Essa é a verdadeira arte do exagero.

Pintor de filmes, Kurosawa desenhava cenas antes de filmá-las: “Fazia de forma apaixonada”, define Fernando Ferreira

Image

Como um adolescente apaixonado, os olhos do professor de cinema da PUC brilharam quando perguntei se ele poderia me conceder uma entrevista sobre Akira Kurosawa. “Você, tão novinha, conhece Kurosawa? É um dos meus cineastas prediletos”, garantiu Fernando Ferreira, ex-editor de cultura de O Globo e crítico cinematográfico.

Não é para menos. A poesia do cinema de Kurosawa abriu as portas do cinema japonês para o Ocidente. O diretor foi um dos cineastas mais importantes de seu país e do mundo. Dirigiu 32 filmes durante a carreira, que durou 50 anos. A linguagem cinematográfica do artista aborda o sentimento humano em seus aspectos mais profundos. Foi premiado com a Palma de Ouro em Cannes e com o Leão de Ouro em Veneza, além de ter ganhado um Oscar pelo conjunto de sua obra.

No dia seguinte ao meu pedido, visivelmente empolgado, Fernando Ferreira me mostrou orgulhoso livros como Relato Autobiográfico, de Kurosawa, e Os filmes de Kurosawa, de Donald Richie. Após dar seu depoimento sobre a influência da pintura na obra do cineasta, a adaptação de obras literárias ao cinema e a tentativa de suicídio do artista, o crítico me fez um apelo. “Leva os livros para casa e olha com calma. Mas cuida direitinho deles”, finalizou, sorrindo.

Qual a importância de Kurosawa para a cinematografia mundial?

Fernando Ferreira: A importância dele na cinematografia mundial é mais do que evidente. Ninguém tem dúvida em reconhecer o Kurosawa como um grande cineasta. É importante lembrar que em 1972, o diretor tentou suicídio. Isso ocorreu em parte porque ele não estava encontrando financiamento para seus filmes. Em parte porque estava doente. E também porque estava vendo acabar um mundo. As pessoas que ele admirava, por exemplo, Yamamoto, aquele que mais o incentivou a fazer filmes e de quem ele foi assistente, estava em fim de carreira, esquecido. O cineasta com quem ele mais se identificou, que foi o John Ford, estava com câncer e desprezado pelos produtores. Kurosawa estava em um momento de profunda depressão. Estava começando a perder lugar entre a imprensa especializada em cinema para outros cineastas japoneses, que não existiriam se ele não tivesse aberto o mundo ocidental para o cinema japonês. Kurosawa tinha uma universalidade que foi um pouco difícil para certos olhares mais perversos e rígidos aceitarem. Porém, o valor local japonês dos filmes dele é importantíssimo. Kurosawa não é absolutamente um mimetizador do ocidente, como foi dito pela crítica francesa.

Que características dos filmes de Kurosawa o tornam um cineasta único, diferente de todos os outros?

FF: Quando um cineasta expõe sua personalidade plenamente, ele se torna diferente dos demais. Kurosawa tinha essa característica. Ele sabia o que queria dizer e fazia isso de forma apaixonada. Chegou a dizer que queria morrer em um set de filmagem. Não lhe foi dada essa alegria, mas de qualquer forma ele viveu o set de filmagem de forma tão plena e amorosa que é impossível não reconhecer que era um homem de cinema de fio a pavio.

No que a obra de Kurosawa pode ser importante para o entendimento da realidade contemporânea?

FF: Tudo o que é pleno, significativo e representa uma época, vale para todas as outras. Nada faz com que um romance de Jane Austen, por exemplo, deixe de ser importante porque ela escreveu sobre uma sociedade que a gente não é mais capaz de entender. No caso de Kurosawa, ele vivenciou momentos do pós-guerra em todas as suas fases. Ele se propôs a uma atualização permanente.

O filme “Sonhos” tem inspiração surrealista?

FF: Tem inspiração surrealista e lances de concepção surrealista, mas não é um filme surrealista por excelência. A cabeça surrealista é muito diferente da de Kurosawa. O cineasta não partilhava de características surrealistas como agressividade, o amor louco, a revolução social. A natureza ideológica surrealista não aparece em Sonhos. Entretanto, ele sofria dessa influência, pois o surrealismo é uma escola muito poderosa que inspirou de várias maneiras, até inconscientemente, alguns cineastas. No caso dele, houve uma absorção consciente, mas ele não teve intenção de filiação ideológica com o surrealismo. O episódio do vulcão de Sonhos tem característica surrealista na medida em que o movimento namorava a ficção científica. Mas a essência do episódio é o humanismo.

Antes de se tornar cineasta, Kurosawa tentou ser pintor. O senhor acredita que isso influenciou a carreira cinematográfica dele?

FF: Não há nenhuma dúvida. Ele fez pinturas especialmente para o Kagemusha. Eu tenho um livro que é só sobre desenhos feitos para esse filme. Kurosawa desenhava as cenas que ia filmar. A maior parte dos cineastas americanos e europeus que tiveram uma formação acadêmica mais estruturada gostava de desenhar ou mandava alguém desenhar para eles. No caso de Kurosawa, isso era simples porque ele desenhava muito bem. Teve uma exposição muito elogiada por volta de 1923. Na ocasião, ele foi saldado como um expressionista japonês que conhecia muito bem a técnica dos expressionistas europeus. Ele era um colorista fabuloso e fez filmes admiráveis no que diz respeito à concepção da cor, como é o caso de Kagemusha Ran. Ele também soube tratar a cor de maneira mais discreta, como fez em Sonhos. Kurosawa tinha uma noção plena e severa do que podia fazer com a cor.

Kurosawa acreditava que Ran era a “obra de sua vida”. O senhor concorda com ele?

FFRan é um filme que adoro, mas não é melhor que outros extraordinários. Não acho que Ran seja um filme muito superior a Rashomon, Sete Samurais, Trono manchado de sangue ou Barba RuivaViveré um dos filmes mais impressionantes que Kurosawa fez. É ótimo que ele tenha achado que Ran era o filme da vida dele. O filme foi feito quando ele tinha acabado de sair da depressão que o levou a uma tentativa de suicídio. Kurosawa pôde novamente lidar com um orçamento amplo que lhe permitia fazer um filme com aquela dimensão que foi o Ran. Novamente ele pega Shakespeare e o transforma em uma situação japon

Os filmes como “Os sete samurais”, “O trono manchado de sangue” e “Ran” falam de temas éticos que envolvem competição, coragem, honra, amizade e família. De que maneira o senhor vê a relação de Kurosawa com esses temas?

FF: É uma recorrência permanente na obra dele. Kurosawa nunca deixou de ver essas coisas. Ele tinha uma formação ética que o levava a pensar sempre nesses termos. De um modo geral, isso não foi visto pelas apreciações críticas como o fundamental desses filmes. Mas é uma coisa que coexiste com o épico e a dramaticidade de alguns deles, com tudo que ele pretendeu focalizar do ponto de vista da dramaturgia.

“O idiota”, “O trono manchado de sangue” e “Ran” são obras baseadas nos livros “O idiota”, de Dostoievski, “Macbeth” e “Rei Lear”, de Shakespeare, respectivamente. Como Kurosawa aborda a relação entre literatura e cinema?

FF: Ele não via essa abordagem como alguma coisa que significasse uma submissão do teatro e do cinema a esses antecedentes. No meu ponto de vista, as melhores versões de Shakespeare no cinema são de Kurosawa. Independente de o Rei Lear ter sido feito por um especialista como é o caso do Peter Brook ou Hamlet por Laurence Olivier, eu acho que ninguém fez cinema baseado em Shakespeare de forma mais autêntica do que Kurosawa. Essas obras são muito fiéis aos livros do ponto de vista temático. Ele não se preocupou em reproduzir a essência literária dessas obras porque, na cabeça de Kurosawa, isso era o menos importante, era a linguagem específica daquele autor. A linguagem específica de Kurosawa era cinema e essa linguagem não podia estar dominada pelo antecedente que o inspirou.

A natureza é um tema recorrente nas obras de Kurosawa: “Dersu Uzala” conta a história de um velho caçador que é guia de um explorador russo em uma floresta. “Sonhos” aborda o egoísmo humano que destrói a natureza e as pessoas. Qual a sua análise da utilização da natureza como forma de crítica social nos filmes do cineasta?

FF: A questão do olhar sob a natureza humana e sob uma forma de compreendê-la como essencialmente generosa, produtiva e justa é comum a todos os filmes de Kurosawa. O diretor foi um humanista autêntico. Isso está muito evidente porque Dersu Uzala está em comunhão com a natureza, característica que perpassa Sonhos também. Porém, no restante da obra dele, não vejo esse enfoque central sob a natureza. Se ela atua de forma terrificante no Trono manchado de sangue é porque ela está ali a serviço daquela atmosfera de tragédia inexcedível que é o próprio Macbeth de Shakespeare. Se isso ocorre também em Ran é porque está muito forte no Rei Lear. E Kagemusha, um filme que Shakespeare assinaria com o maior prazer, também tem a presença da natureza, mas é naquele momento final em que tudo se acabou e a guerra é capaz de destruir tudo, transformar sonhos, realidades, fantasias em alguma coisa inexoravelmente destrutiva.

Cineasta Wong Kar-wai abusa de recursos estéticos para abordar o mistério do amor

Image

Mais que contar uma história, o cinesta Wong Kar-wai proporciona uma experiência estética em cada um dos seus filmes. Ao longo da carreira, apurou cada vez mais sua capacidade de transitar por elementos que agregam sensibilidade às histórias de amor. Luzes coloridas, espaços gráficos, trilha sonora refinada, movimentação de câmera e cenas em slow motion transbordam a natureza dos sentimentos. Essa transição é perceptível se compararmos filmes como “Amores Expressos” (1994), “Amor à Flor da Pele” (2000) e “2046” (2004).

Suas obras, extremamente líricas, tratam da essência do amor e da natureza dos relacionamentos. O cineasta lança um olhar idiossincrático sobre os personagens, explorando suas inseguranças, paixões, angústias e vontades.

Dentro da massa urbana, indivíduos se revelam solitários e isolados em uma procura instintiva pelo afeto, aparentemente nunca saciada. A “falta” está sempre presente no cinema de Wong Kar-wai, com amores incertos, muitas vezes não consumados, como se a beleza pudesse ser preservada pela distância e o amor se manifestasse de maneira mais plena quando isolado. Como menciona O Banquete, de Platão: “amor é pobreza, não perfeição, e só o recurso pode saná-la provisoriamente. Quanto mais falta há, mais pleno ele é”.

A relação amorosa não se concretiza com facilidade. Entre os obstáculos que se interpõem entre ela está o tempo, impossível de conter. O cineasta capta a beleza de certos instantes em que o tempo parece parar, o mundo está sempre em movimento e os personagens transitam por ele assim como as lembranças passam pela nossa memória.

O tempo, na obra do artista, mostra pessoas próximas fisicamente, mas longe simultaneamente. As cenas de Kar-wai possuem uma presença constante de relógios e calendários, revelando a importância desses elementos na narrativa e no simbolismo em seus filmes. O diretor é como um psicólogo do tempo: ele faz com que objetos se movam de forma rítmica, o que provoca uma percepção subjetiva do significado do tempo na vida dos personagens.

Em crítica cinematográfica no fórum Senses of Cinema, Elizabeth Wright aborda o “missed moment”, o momento perdido, aspecto recorrente na obra de Kar-wai, que revela personagens em constante procura para compensar essa falta. Eles vivenciam encontros arbitrários e, após cruzarem o caminho de alguém, têm suas vidas modificadas por completo.

Acima de concentrar-se em histórias ou finais bem desenhados, o diretor transborda emoção em seus filmes. A utilização de uma estética refinada, repleta de cores, fotografia granulada e ausência de falas é uma busca do diretor por expressar sentimentos a partir de uma experiência visual. Cenas poéticas extravasam sensibilidade, enredos simples transmitem o não-palpável, o mistério do amor. Mesmo quando não há cenas românticas concretas, a sensualidade está sempre presente nos pequenos detalhes.

A poesia amorosa revela-se na quebra da rotina, seja ao se apaixonar ou desapaixonar. Nas palavras do próprio diretor em entrevista ao jornalista Graham Fuller, “então eles se vêem em trânsito e no fim tomam uma nova direção”.